O Matemático
Durante séculos, a Matemática foi encarada de forma platónica, ou seja, era apresentada como um conjunto de verdades quase inquestionáveis e quase sempre separadas da realidade que as envolvia. A sociedade ocidental renunciou os contributos de outras sociedades, uma vez que estes não encaixavam nos paradigmas já pré - estabelecidos. A Matemática parecia assim distanciar-se do meio, quando na realidade é dele que ela depende e são nos seus problemas diários que ela se inspira.
Na passada década de 30, novos desafios surgiram e as “certezas” do pensamento matemático foram ultrapassadas pela investigação sobre “fundamentos”. Os teoremas de Goedel, a Teoria da Relatividade de Einstein ou até mesmo o Princípio da Incerteza de Eisenberg são disso exemplo.
Com o aparecimento do computador, desenvolve-se também a matemática computacional e com ela reconsidera-se a natureza da demonstração e consequentemente da verdade.
Num século XX, pleno de incertezas, dúvidas, catástrofes e imprevisibilidades, a Matemática parecia incapaz de dar respostas concretas ao mundo envolvente. Foi obrigatório repensar o conhecimento e a forma de o atingir. Cada vez mais requisitada em diversas áreas do saber, novas práticas lhe foram exigidas e a Matemática deixou obrigatoriamente o isolamento e recorreu a interdisciplinaridade e transdisciplinaridade.
É desta forma que a matemática entra no quotidiano dos cidadãos, que querem saber mais sobre a inteligência artificial, sobre a medicina, sobre a complexidade de alguns fenómenos naturais, sobre determinados projectos arquitectónicos ou at
é mesmo sobre momentos económicos. O que é certo é que a curiosidade crescente não era proporcional àqueles que tinham hipóteses para a saciar, dado que apenas uma pequena elite tinha acesso ao verdadeiro estudo da Matemática.
É na década de 70 que surge um novo conceito – a Etnomatemática.
A Etnomatemática apresenta-se como a análise das práticas matemáticas nos seus diferentes contextos culturais e reúne os saberes de todos os que anteriormente se “encontravam longe” do pensamento ocidental. Estreitou-se assim a relação entre a matemática, a cultura e a sociedade.
É aqui que Bento de Jesus Caraça se apresenta como um matemático moderno, muito à frente do seu tempo, dado que na sua obra o conhecimento científico surge ligado à sociedade em geral, a matemática apresenta-se como parceira do dia a dia do cidadão comum. Ressalva que “A Ciência é um organismo vivo impregnado de condição humana, com forças e fraquezas subordinado às grandes necessidades do homem na sua luta pelo entendimento e libertação.”
No prefácio dos Conceitos Fundamentais da Matemática, Bento de Jesus Caraça afirma que existem duas formas de encarar a ciência. Na primeira, e mais comum, ela é apresentada como algo já criado, lógico e longe da realidade comum. Numa segunda atitude, e a que decidiu adoptar, a ciência surge como processo dinâmico repleto de contradições e hesitações resultantes da sua íntima ligação à vida social. A ciência em geral e a Matemática surgem assim lado a lado com a vida real. O livro debruça-se sobre a experiência matemática, a sua história e o processo de descoberta do conhecimento, sobre problemas famosos, descobertas, personalidades de matemáticos, sempre apresentados numa espécie de diálogo autor-leitor.
O Auto-Didacta
Bento de Jesus Caraça viveu num tempo muito difícil como relata a História do século XX. O Mundo atravessa um período de guerras e golpes de estado e Portugal enfrenta a subida de Salazar ao poder e de todo um sistema de repressão. Viveram-se tempos de
obscurantismo cultural e científico não havendo lugar para a divulgação do conhecimento e investigação científicos em Portugal, tal como José Sebastião e Silva (1914-1972) (matemático português) refere:
“havia, quando muito, casos isolados de matemáticos investigadores. Um desses casos excepcionais foi Mira Fernandes, mestre e grande amigo de Caraça.” (Diário de Lisboa, 25 de Junho de 1968).
Assim, Bento Jesus Caraça destacou-se como interlocutor da ciência e não como inventor... Não criou teorias matemáticas mas conseguiu mostrá-las de forma acessível e clara.
Foi um professor cativante de tal forma que os alunos aguardavam-no à porta da sala de aula de modo a conseguirem os melhores lugares. Foi, portanto um excelente comunicador e transmissor de conhecimentos científicos.
As sábias palavras de José Sebastião e Silva (1914-1972), mais uma vez, são prova disso mesmo:
“ [Caraça] não foi um investigador, isto é, não foi um criador de ciência. E como poderia sê-lo, tendo sido nomeado assistente aos 18 anos (!) e professor catedrático aos 28, numa Escola da Universidade Técnica, onde grande parte da massa discente entrava com uma preparação deficientíssima em matemática? O que devemos admirar, sim, é o seu esforço de autodidacta, as suas invulgares qualidades de trabalho, de que as «Lições de Álgebra e Análise» são um dos frutos. E sinto-me inclinado a admitir que, sob esse aspecto, a sua actividade foi realmente criadora; isto é, sou levado a pensar que Bento Caraça criou, efectivamente, um estilo de ensino da matemática, de que eu próprio sou beneficiário.” (Diário de Lisboa, 25 de Junho de 1968). |
Além desta obra aqui referida ("Lições de Álgebra" e Análise) Bento de Jesus Caraça escreveu aquela que viria a ficar para sempre “colada” ao seu nome: "Conceitos Fundamentais da Matemática".
Na Biblioteca Cosmos foram publicados os dois primeiros volumes e apenas em 1951 foi publicada na íntegra. Neste livro podemos encontrar uma abordagem clara de conteúdos matemáticos, passear pela história desta ciência, sempre com uma linguagem simples que o autor oferece a todos os interessados por novos desafios não precisando de ser “especialistas na matéria”.
Bento de Jesus Caraça, o estudioso, centrou as suas atenções e estudos na área das Matemáticas Financeiras, Análise Matemática e na Álgebra, impulsionou a econometria em Portugal e mudou para sempre o ensino da matemática no nosso País, tornando-o mais humano e usando uma linguagem nova e cativante.
A par da sua luta contra o Estado Novo e em defesa do ensino para todos e contra uma Escola elitista existente na época, Caraça realizou vários cursos e conferências, escreveu obras e contribuiu para a cultura científica portuguesa com inúmeras publicações.